O Grupo Confederal Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica (GUE-NGL) realizou, a 10 de Janeiro, no Parlamento Europeu, um importante debate sobre o Tratado para a Proibição das Armas Nucleares.
Leia aqui a intervenção de Socorro Gomes, presidente do Conselho Mundial da Paz:
Exmos. Senhores e Senhoras Parlamentares,
Estimados companheiros e companheiras do movimento internacional pela paz e o desarmamento,
É de elevada pertinência e urgência o debate realizado pelo Grupo Confederal Esquerda Unitária Europeia / Esquerda Verde Nórdica, no contexto da nossa luta comum contra as armas nucleares, uma luta que tem assumido cada vez maior abrangência.
Saudamos a iniciativa e agradecemos o convite, em nome do Conselho Mundial da Paz, organização que desde a sua fundação luta contra as armas nucleares e tem como seu documento fundamental o Apelo de Estocolmo.
Em 1949-1950, centenas de milhões de pessoas em todo o mundo assinaram esse Apelo contra as armas nucleares, preocupadas com as consequências e impactos do seu uso. Fazia pouco tempo que o primeiro emprego deste arsenal pelo imperialismo estadunidense chocara a consciência da humanidade, com a devastação de Hiroshima e Nagasaki e o massacre de mais de 200 mil japoneses. Empenhados em evitar que tal tragédia se repetisse, movimentos populares de todo o mundo assumiram a luta pela abolição completa dessa ameaça ao planeta e aos povos.
É uma luta, como se vê, que já dura sete décadas. Contudo, não cessa, muito pelo contrário, a proliferação nuclear tornando permanente o perigo de guerra com o uso de tais armas. Já existem hoje, segundo estimativas da ONU, mais de 15 mil ogivas nucleares dos detentores declarados – e mais de 80 em Israel, que nunca declarou seu arsenal, seguindo, assim, sem monitoramento internacional, enquanto mantém uma política regional ofensiva.
Na sua última Assembleia realizada no Brasil, em novembro de 2016, o CMP reafirmou sua posição de princípios. Cito um trecho da resolução ali aprovada: “A abolição das armas nucleares é mais urgente do que nunca, se desejarmos evitar uma catástrofe humana como a experimentada pelos japoneses em Hiroshima e Nagasaki, há 71 anos, ou de proporções maiores. O estoque global de ogivas nucleares e os novos desenvolvimentos em tecnologia de armas nucleares e mecanismos de deslocamento estão gerando proliferação”.
É passada a hora de um compromisso mundial com a erradicação de todos os arsenais nucleares e a completa exclusão do “poder nuclear” de toda e qualquer formulação de política externa. Os promotores do militarismo e de políticas agressivas foram sempre as principais barreiras para o avanço desse compromisso, principalmente no âmbito das Conferências de Revisão do modesto e limitado Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que entrou em vigor ainda em 1970. Na última revisão, em 2015, denunciamos como os EUA e seus aliados Reino Unido e Canadá – para benefício de Israel, que não ratificou o TNP, – conseguiram impedir a adoção de uma declaração final principalmente para evitar o estabelecimento de um prazo para a realização da Conferência sobre o Oriente Médio como Zona Livre de Armas de Destruição em Massa em 2016 – iniciativa acordada ainda em 1995 e até hoje suspensa. Mas outras deficiências incluíam questões de fundo, como a falta de mecanismos efetivos para o desarmamento, o que colocava em causa o verdadeiro compromisso com o objetivo.
Em julho do ano passado, com o voto de 122 Estados membros, a Organização das Nações Unidas aprovou o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares, o qual estabelece que cada Estado parte se compromete a não produzir nem possuir armas nucleares, nem a transferir tais armamentos direta ou indiretamente. É, efetivamente, um marco importante na tomada de consciência de que uma guerra nuclear teria consequências catastróficas para toda a humanidade, uma posição em busca de soluções políticas e jurídicas no âmbito internacional a fim de constituir um instrumento juridicamente vinculante para a proibição das armas nucleares e sua total eliminação.
Entretanto, o Tratado ainda não preenche os requisitos necessários para assegurar o objetivo perseguido, nem para diminuir a corrida aos armamentos nucleares. É um Tratado juridicamente vinculante apenas para os países que aderirem , mas não os proíbe de fazerem parte de alianças militares com países possuidores de armas nucleares. Além disso, cada um dos países aderentes “tem o direito de retirar-se do Tratado se decidir que eventos extraordinários relativos à matéria do Tratado põem em perigo os supremos interesses do próprio país”. Ou seja, a qualquer momento qualquer país aderente pode abandonar o Tratado.
A maior limitação está no fato de que os países possuidores de armas nucleares não aderem ao Tratado, assim como não aderem os países da Otan que, mesmo não sendo possuidores dessas armas, hospedam em seus territórios bombas nucleares estadunidenses.
Não surpreendentemente, após a adoção do Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares pelas Nações Unidas, as delegações dos EUA, Reino Unido e França emitiram uma declaração conjunta contrária, alegando que “a iniciativa não leva em conta as realidades do ambiente securitário internacional”. Argumentaram ainda que aderir ao Tratado é “incompatível com a política de dissuasão nuclear, que tem sido essencial para manter a paz na Europa e no Norte da Ásia por mais de 70 anos.” Uma posição ultrajante!
No Conselho Mundial da Paz e em diversos outros movimentos internacionais engajados nessa luta, temos denunciado as políticas securitárias e agressivas das potências imperialistas, a primazia do militarismo, a predisposição a perpetrar o primeiro ataque, no quadro de uma estratégia de guerra preventiva. Tais políticas ameaçam permanentemente os povos, põem em risco a sobrevivência da humanidade. Constituem a expressão do hegemonismo baseado na força bruta, uma política de ameaça e agressão.
Como temos denunciado reiteradamente, o programa de partilha nuclear da Otan, através do qual os EUA mantêm centenas das suas ogivas espalhadas pela Europa, até à Turquia, viola o próprio status quo internacional relativo às armas nucleares, uma vez que hospedam esses arsenais em países não monitorados enquanto potências nucleares. O imperialismo estadunidense na prática estimula a proliferação nuclear ao proporcionar cobertura nuclear a aliados que não possuem essas armas.
Em 2007, através do relatório “Rumo a uma Grande Estratégia para um Mundo Incerto: Renovando a Parceria Transatlântica”, os membros da Otan validaram a doutrina estadunidense de “ataque nuclear preventivo” com justificativas chauvinistas e beligerantes como a de alegadamente exercerem o direito de proteger as sociedades e “modos de vida” em seus países. Invocando as “ameaças assimétricas” e a “incerteza” dos governos e povos de seus próprios países, os autores desse relatório, oficiais militares dos EUA, Alemanha, Reino Unido, França e Holanda, buscam justificar a doutrina ofensiva e a própria continuidade de uma aliança beligerante.
Vemos exemplos dos impactos de uma receita ofensiva em diversas regiões, com intervenções e agressões levadas a cabo sob os pretextos das “ameaças assimétricas”, dos “Estados falhados”, da “promoção da democracia” e da já comprovadamente falaciosa luta contra o terrorismo. No mesmo relatório, os oficiais dizem, após acusarem abundantemente o Irã por seu programa nuclear como uma ameaça existencial, que “Alcançar a estabilidade regional” no Oriente Médio “só pode ser conseguido a um nível estratégico mais elevado. Soluções estarão em novos equilíbrios regionais, que terão de incluir interesses estratégicos chave, como as questões da proliferação e do acesso a matéria-prima” . Fica evidente que os interesses estratégicos em causa são os das potências, em detrrimento dos povos da região, vítimas de constante ingerência e agressão.
Na falaciosa “guerra contra o terror”, o relatório indica que a dissuasão é o “elemento indispensável para qualquer estratégia do século 21”, e que esta também se baseia na “criação de incerteza” para os seus eventuais alvos, descrevendo uma “escalada a qualquer momento” como parte da “estratégia proativa” defendida. Fica patente que para as potências imperialistas a dissuasão é um conceito para fundamentar uma doutrina ofensiva voltada ao objetivo de perpetuar uma política imperialista de dominação e guerra, inclusive nuclear.
Por isso, a abertura a assinaturas, em setembro deste ano, do Tratado sobre a Proibição Nuclear, deve ser celebrada. É, efetivamente, um importante passo na direção do compromisso mais ambicioso que há sete décadas exigimos: uma resposta efetiva aos anseios dos povos em todo o mundo, à verdadeira “ameaça securitária” em todo o planeta, que é a política belicosa baseada na ameaça de aniquilação completa, sustentada pelo imperialismo estadunidense e seus aliados da Otan.
Ficam comprovadas, com esse passo, a força e a capacidade dos povos, organizados em redes ou movimentos da paz, como a Campanha Internacional para Abolir as Armas Nucleares (ICAN), que aqui congratulamos pelo reconhecimento do seu trabalho imprescindível, com a atribuição do Prêmio Nobel da Paz no ano passado. O esforço deve ser contínuo para a sensibilização de todos e todas sobre os efeitos e impactos desses arsenais e sobre o seu papel na política mais abrangente sustentada pelas potências imperialistas, uma que pretende garantir a sua hegemonia a todo custo.
Fica atestado, também, que a nossa ampla unidade nesta luta comum é capaz de promover conquistas e culminar na criação de espaços e instrumentos para avançarmos e seguirmos pressionando pelo passo efetivo de abolição completa, no quadro da nossa luta histórica contra a política beligerante das grandes potências e por uma ordem internacional mais equitativa, justa e de paz.